Domingos Javelino - Diligente - 10 de Janeiro, 2025
Centenas de famílias de Fomento II viram as suas casas demolidas pela SEATOU, ficando a viver debaixo de uma ponte sem qualquer proteção, de 2 a 8 de janeiro. Crianças, grávidas e idosos enfrentam calor e fome enquanto as indemnizações prometidas não chegam. O Primeiro-Ministro Xanana Gusmão desvalorizou as críticas, respondendo com sarcasmo à tragédia vivida pela população.
Entre 2 e 8 de janeiro, várias famílias de Fomento II, em Comoro, Díli, viveram debaixo da ponte Hinode 3, após a demolição das suas casas pela Secretaria de Estado dos Assuntos da Toponímia e da Organização Urbana (SEATOU) e pela Autoridade Municipal de Díli (AMD). Abrigadas apenas por lonas e restos de materiais recolhidos, crianças, grávidas e idosos enfrentaram noites quentes e húmidas, sem qualquer proteção adequada. Estas famílias recusaram a ordem da SEATOU para regressarem aos seus municípios de origem, afirmando que só o fariam após receberem as indemnizações prometidas.
No dia 2 de janeiro, equipas da SEATOU chegaram a Fomento II com máquinas pesadas e demoliram as casas, sem aviso prévio, surpreendendo os moradores. “Sabíamos que teríamos de sair um dia, mas nunca pensámos que seria assim, de repente, sem termos tempo para salvar os nossos pertences ou encontrar outro lugar para ir”, lamenta Francisca de Jesus, uma das afetadas.
No total, 288 casas foram destruídas. Muitas famílias, sem alternativas e recusando-se a regressar aos seus municípios de origem, decidiram permanecer nas margens da ribeira, debaixo da ponte. Viveram em condições extremamente precárias, dormindo no chão de terra batida, expostas ao calor abrasador, às noites frias e sem acesso a água potável. “É como se já não fôssemos gente para eles. As nossas crianças são o futuro deste país, mas como podem crescer assim?”, desabafa Alarico de Deus, um dos desalojados, com a voz carregada de emoção.
Comparando a ação da SEATOU à violência das milícias pró-Indonésia em 1999, Alarico condenou a falta de dignidade do processo. “Compreendemos a necessidade de organizar a cidade, mas os cidadãos têm de ser tratados com respeito, não como animais”, afirmou.
Francisca, mãe de duas crianças, tentou manter a esperança, mas confessou o desespero. “Os meus filhos dormiram no chão. Estou preocupada com a saúde deles, mas não temos outro sítio para ir”, explicou, enquanto tentava improvisar uma cama com restos de madeira e plástico.
Com a falta de eletricidade, as famílias recorreram a velas para iluminar a noite, tentando trazer um pequeno raio de luz para a escuridão que agora define as suas vidas. As chamas tremeluzentes não combatem só a escuridão física. Simbolizam também a luta desesperada por dignidade num cenário de total abandono.
Sob a ponte, onde chamaram “casa”, os cidadãos improvisaram o impossível. Utilizaram a casa de banho comunitária da estrada vizinha e cozinharam no chão frio e sujo, enfrentando diariamente condições desumanas. Cada tarefa simples foi uma batalha pela sobrevivência.
Para muitas crianças, a destruição das casas significou o fim dos estudos. Adelina, de 9 anos, viu a sua casa ser demolida e ficou sem os seus materiais escolares. “Agora não sabemos para onde ir para continuarmos a estudar. Os nossos materiais escolares ficaram todos destruídos e não sabemos o que fazer”, desabafou a menina, enquanto ajudava a mãe a recolher os poucos pertences que restaram.
Face à crescente pressão pública, o Primeiro-Ministro Kayrala Xanana Gusmão deslocou-se ao local no dia 8 de janeiro, por volta das 18h, para verificar pessoalmente as condições das famílias desalojadas. Após ouvir as queixas das vítimas, o chefe do governo ordenou que fossem transferidas para o antigo espaço de quarentena em Tasi-Tolu, onde poderiam permanecer até que o processo de indemnização fosse concluído.
A operação de transferência não decorreu sem dificuldades. Um vídeo que se tornou viral nas redes sociais mostra a resistência das famílias durante a intervenção da SEATOU e da equipa do município de Díli. Entre gritos de protesto, algumas vítimas anunciaram: “Não sairemos daqui! Destruíram as nossas casas e trataram-nos como animais. Queremos os nossos direitos!” O medo e o desespero eram visíveis, especialmente entre as crianças, que choravam com a presença das autoridades.
Apesar da resistência, a SEATOU, apoiada pela Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL) e pela unidade da polícia militar das F-FDTL, avançou com a transferência. As autoridades reforçaram que o espaço de quarentena em Tasi-Tolu foi preparado para acolher as famílias temporariamente, considerando que a permanência sob a ponte coloca em risco a segurança e a saúde dos desalojados. Os bens das famílias foram recolhidos e transportados para o local pelas equipas no terreno.
Nessa noite, os desalojados dormiram no espaço de quarentena. No dia 9 de janeiro, a equipa da SEATOU e as autoridades de proteção civil emitiram orientações para organizar o regresso aos seus municípios de origem. No entanto, enquanto algumas famílias regressaram, outras optaram por permanecer na capital, ficando de favor em casa de familiares ou arrendando outros espaços. Antes da mudança, o governo forneceu bens alimentares para apoiar as famílias afetadas.
Indemnizações prometidas, mas nunca cumpridas
Apesar de a SEATOU ter recolhido os dados das famílias em 2024, as indemnizações ainda não foram pagas. “Recolheram os nossos dados duas vezes, pediram-nos para abrir contas bancárias e enviar os respetivos números ao Governo, mas nunca recebemos qualquer notificação. Deram-nos esperança, mas depois destruíram tudo”, lamenta Alarico de Deus.
O chefe da aldeia de Fomento II, Domingos Mendonça, também foi apanhado de surpresa pela demolição. “Prometeram notificar-nos antes de agir, mas nunca o fizeram. Não tivemos tempo para preparar nada”, afirmou.
Por sua vez, o Secretário de Estado dos Assuntos da Toponímia, Germano Santa Brites, justificou a ação com os riscos de desastres naturais. “Mais vale salvar as pessoas agora. Quando as suas casas forem levadas pela corrente da ribeira, vão, com certeza, culpar o Governo”, declarou. Contudo, os moradores consideram que as autoridades falharam ao não criar condições prévias para o seu realojamento.
O Ministro das Obras Públicas, Samuel Marçal, afirmou que o pagamento das indemnizações só será possível em fevereiro de 2025. “Estão previstos dois milhões de dólares americanos para as indemnizações. O montante atribuído a cada família dependerá do tamanho e das medidas das habitações”, garantiu.
Na noite de quarta-feira, 8 de janeiro, o Primeiro-Ministro deslocou-se à ponte onde algumas famílias ainda permaneciam e ordenou que fossem transferidas para as instalações da antiga quarentena, em Tasi-Tolu. No entanto, até ao momento, não se encontra ninguém nem debaixo da ponte nem nas instalações de quarentena, deixando em aberto o destino destas famílias.
Xanana Gusmão reage com ironia e indiferença
Ontem, dia 9 de janeiro, na conferência de imprensa, depois do encontro com o Presidente da República, Xanana Gusmão respondeu com sarcasmo às questões dos jornalistas sobre as indemnizações prometidas às famílias desalojadas: “Todos receberão, desde que já tenham uma conta bancária”. Quando confrontado sobre quem seriam essas pessoas, pediu os nomes aos jornalistas e sugeriu que os afetados lhe escrevessem uma carta diretamente.
Relativamente às crianças desalojadas que ficaram sem acesso à escola, Xanana respondeu de forma evasiva a um jornalista que sugeriu maior planeamento nos despejos para que as crianças não sofressem com a situação: “Se pensarmos como tu, temos de fechar as escolas nos municípios.” Sobre os estudantes universitários que foram despejados e vivem em Díli por falta de universidades nos municípios, Xanana reagiu com aparente surpresa: “Ah, o quê? As pessoas que foram despejadas querem ir para a universidade?” Quando esclarecido que já estavam a frequentar a universidade, pediu novamente os nomes, prometendo “resolver a situação”.
Em tom de gozo, comentou que muitas famílias vinham para Díli “fazer e vender fritos” para pagar a escola dos filhos, referindo as dificuldades de acesso à educação nos municípios. No entanto, abordou o tema com ironia, sugerindo que a situação não era tão grave. Mais tarde, ao ser questionado sobre a possibilidade de construir casas dignas para os desalojados, tal como era intenção do anterior Governo, afirmou que seria uma boa ideia, mas ironizou que talvez as ONG já tivessem “roubado o zinco” necessário para a construção.
Oposição e ativista denunciam violações de direitos humanos
A oposição também condenou as ações da SEATOU e do Executivo. O deputado Luís Roberto, do KHUNTO, classificou o despejo como “desumano e brutal”. “Este Governo perdeu a humanidade. A lei foi implementada sem coração, como se as pessoas não tivessem valor”, criticou.
Na mesma linha, Valentino Ximenes, deputado da Fretilin, denunciou o Governo por sacrificar os mais pobres em nome da modernização. “Ordenaram que as famílias regressassem aos seus municípios de origem, o que viola a liberdade de circulação garantida pela Constituição. Díli precisa de ser modernizada, mas não à custa do sofrimento da população”, afirmou.
A Rede Ba Rai, organização da sociedade civil que trata de questões relacionadas com terra e habitação em Timor-Leste, alertou para os impactos profundos do despejo, particularmente em mulheres chefes de família, crianças e idosos. “Muitas mulheres voltaram dos municípios e encontraram as suas casas destruídas. Ficaram traumatizadas. Isto agravou ainda mais a pobreza e constitui uma violação grave dos direitos humanos”, afirmou Hortêncio Pedro Vieira, coordenador da organização.
A Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ) expressou preocupação, revelando que os dados recolhidos mostram “indícios graves de violação de direitos humanos e desconsideração pelos princípios de boa governação”, destacou Virgílio Guterres.
Por sua vez, o ativista Nelson Roldão Xavier criticou duramente a decisão da Secretaria de Estado dos Assuntos da Toponímia e da Organização Urbana (SEATOU) de demolir casas em Fomento II, descrevendo a ação como “injusta e brutal, sem qualquer preparação prévia”. Xavier afirmou: “A SEATOU demoliu as casas sem antes criar condições ou analisar as consequências para a comunidade. É uma atitude insensível e irresponsável. Como é que as pessoas com raciocínio podem decidir viver nas margens da ribeira? Precisamos de perceber as causas por detrás desta situação.”
O ativista destacou que muitas famílias em Fomento II vieram de outros municípios em busca de melhores condições de vida em Díli. “Com o desenvolvimento, as universidades, os postos de trabalho e os serviços concentrados na capital, as pessoas mudaram-se para cá para procurar emprego e melhores condições de vida. Trabalham em atividades simples, como limpeza ou pequenos negócios, e esforçam-se para se capacitarem. Os governantes ignoram esta realidade ou fingem ignorá-la, enquanto favorecem aqueles que já têm privilégios.”
Xavier denunciou a falta de notificações adequadas e a ausência de soluções para os desalojados. “Demoliram as casas sem pensar no que aconteceria no dia seguinte. Não criaram condições concretas, como alojamentos provisórios ou novas habitações para a comunidade. Isto demonstra falta de planeamento e humanidade.”
Também criticou o comportamento do Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, que estava presente durante as demolições. “O Primeiro-Ministro ria, batia palmas, fumava e fingia ajudar a carregar os pertences das pessoas. Mas ele sabia muito bem que já tinha destruído o futuro destas famílias, tornando as suas vidas uma miséria. Esta encenação de empatia é uma máscara para esconder a falta de um plano integrado para o despejo administrativo.”
Segundo Xavier, a ação violou os direitos constitucionais consagrados nos artigos 58.º e 44.º, sobre o direito à habitação digna e à liberdade de circulação. “Deixaram as pessoas a viver debaixo da ponte, sem abrigo, sem água potável, expostas ao frio e à fome. Crianças e mulheres grávidas estão a sofrer. Isto não é apenas uma injustiça, é uma violação dos direitos humanos.”
O ativista comparou a situação com períodos traumáticos da história recente de Timor-Leste. “Durante a campanha, choraram e prometeram milagres. Agora, no poder, governam com autoritarismo, fazem o povo chorar enquanto vivem em festas e luxos financiados pelo Orçamento Geral do Estado. Esqueceram o compromisso com aqueles que mais precisam.”
Xavier revelou ainda que 361 famílias não receberam qualquer notificação ou compensação, apesar de estarem dispostas a cooperar. “Prometeram tirar as famílias do risco, mas condenaram-nas a uma miséria prolongada. Isto é um crime contra a humanidade.” Classificou o ato como “semelhante ao imperialismo”. “Um vem prometer, outro vem destruir. É como em 1999 ou na crise de 2006: primeiro acariciam-nos, depois mandam os seus subordinados destruir. Após a demolição, aparecem para fingir ajudar a arrumar as coisas, mas o mal já está feito.”
Foto, Facebook.
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