As autoridades timorenses pagaram mais de 24,5 milhões de dólares entre 2014 e 2018 para o projeto de construção do ferry Haksolok, segundo uma auditoria da Câmara de Contas a que a Lusa teve acesso.
O relatório de auditoria à Região Administrativa Especial de Oecusse-Ambeno (RAEOA), referente aos anos entre 2016 e 2018, dedica mais de 50 páginas a uma análise detalhada do polémico projeto, que ainda não foi terminado.
“No âmbito desde projeto foram assinados pelo menos 23 contratos, adendas e acordos, tendo sido feitos pagamentos no valor total de 24,5 milhões de dólares [sensivelmente o mesmo em euros], dos quais 94,1% pela RAEOA, nos cinco anos compreendidos entre 2014 e 2018”, refere o relatório.
“Daquele valor total, foram pagos 21,38 milhões de dólares à Atlanticeagle, dos quais 18,29 milhões relativos à construção do ferry e 3,1 milhões referentes aos pontões e passadiços”, nota ainda.
A ‘fatura’ do projeto inclui ainda pagamentos de quase 1,1 milhões de dólares à ISQ, de 1,44 milhões de dólares à ENVC/EMPORDEF e de quase 154 mil dólares (entre 2016 e 2018) a Luís Pité, identificado como “representante do armador”.
“Os responsáveis não enviaram a este tribunal os documentos inerentes às despesas suportadas pela RAEOA com o processo relativo ao ferry, durante os anos de 2019 a 2021”, refere a auditoria.
O Haksolok é um dos projetos mais polémicos dos últimos anos em Timor-Leste, causando intensos debates e fortes críticas a Mari Alkatiri, primeiro presidente da RAEOA.
A CC considera que a “urgência foi má conselheira” na decisão de agosto de 2014 de adjudicar por ajuste direto o contrato para a construção à Atlanticeagle, notando que as razões para a escolha da empresa “não são conhecidas, sendo este processo caracterizado pela total falta de transparência em que ninguém assume responsabilidades”.
Refere que a Atlanticeagle foi constituída em junho de 2012 para concorrer à concessão dos Estaleiros Navais do Mondego, que lhe acabaria por ser atribuída em setembro.
Logo em abril do ano seguinte, porém, foram publicadas várias notícias na imprensa portuguesa, segundo as quais os estaleiros tinham sido "entregues a empresa sem dinheiro” ou “cedidos a empresa falida”.
“As dificuldades vividas por esta empresa eram do conhecimento público em Portugal. Não obstante, nada disto terá preocupado os responsáveis da Atlanticeagle quando, pelo menos ao longo do ano 2014, procuraram obter tal contrato junto do Governo de Timor-Leste”, refere o relatório.
“De igual modo, aquele que viria a ser o representante do Armador, Luís Pité, não terá avisado as autoridades timorenses em relação às dificuldades da empresa”, sublinha.
O contrato para a construção do Haksolok foi assinado com a Atlanticeagle em setembro de 2014 (ainda pelo Governo central liderado por Xanana Gusmão) e os trabalhos arrancaram em 2015, mas estão parados há vários anos.
Depois de um pedido de insolvência, a AtlanticEagle Shipbuilding viu aprovado um Plano Especial de Recuperação e em 2021 Timor-Leste anunciou um investimento de 11,8 milhões de euros nos Estaleiros Navais do Mondego (ENM), na Figueira da Foz. O atual sócio maioritário da AtlanticEagle Shipbuilding é uma sociedade criada pela RAEOA.
Na análise da operação, a CC recua a 2005 e ao investimento previsto do Governo Regional dos Açores na construção dos ferries Atlântida e Anticiclone, projeto adjudicado aos Estaleiros Navais de Viana de Castelo (ENVC).
A empresa responsável pela elaboração dos “pré-projetos” (ou anteprojetos) dos navios foi a SCMA - Sociedade de Consultores Marítimos, Lda., que tem como sócio-gerente, refere a CC, João Moita, “engenheiro ligado ao processo de construção do Haksolok”.
Os auditores referem que a SCMA “prestava serviços à mesma empresa cujo trabalho devia fiscalizar”, sendo que em 2009 o projeto base do Anticiclone não tinha sido ainda aprovado, acabando mesmo por não ser concluído.
“Os blocos de aço que haviam já sido fabricados pelos ENVC foram vendidos como sucata e os equipamentos foram vendidos ao Estado de Timor-Leste”, nota.
O relatório ‘salta’ para 2014, quando o Governo timorense decide enviar uma equipa técnica do Ministério dos Transportes e Comunicações (MTC) “com o objetivo de proceder a uma avaliação de equipamentos e materiais destinados à construção de um navio para Timor-Leste, apto a fazer a ligação entre Díli e a região de Oecusse”.
A CC considera que tanto a AtlanticEagle como Luis Pité tentaram convencer Timor-Leste a comprar os equipamentos – alguns deles com mais de seis anos na altura e já obsoletos -, estimando que o seu valor seria de cerca de sete milhões de dólares.
Para a CC, um valor que “está longe da realidade, sendo o valor dos equipamentos em questão muito inferior ao montante apontado pela empresa”, peloque “a Atlanticeagle estava apenas a vender ilusões conforme se demonstra neste relatório, com a ajuda do comandante Luís Pité”.
O contrato de compra do equipamento seria celebrado em novembro de 2014, tendo sido feito um primeiro pagamento de 1,44 milhões de dólares, mas sem que, pelo menos até janeiro de 2016, tenham sido entregues todos os equipamentos previstos.
A CC considera que toda a questão se “reveste de surrealismo”, questionando os argumentos de Luís Pité, que insistiu, em 2021, sobre a necessidade de ‘atualizar’ os equipamentos para cumprir nova legislação.
“É o mesmo Luís Pité que afirma, no seu relatório de dezembro de 2017, que a regulamentação em questão está em vigor desde 7 de julho de 2010, ou seja, aquando da compra, em 2014, dos equipamentos pelo MTC, a regulamentação estava em vigor há vários anos. Como 'homem do mar' deveria saber que os motores adquiridos pelos ENVC, segundo o próprio afirma, no ano 2006, chegados a 2014, não cumpriam com a regulamentação internacional, facto que impediria a sua certificação”, refere o relatório.
“A compra dos equipamentos em 2014 por Timor-Leste (…) veio a revelar-se uma decisão desastrosa para o Estado de Timor-Leste”, refere, notando que foi Luis Pité “quem recomendou” essa compra.
ASP // JH
Lusa/Fim
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