sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

A conflituosa relação de Ramos Horta com a verdade


José Lopes - Observador 

O agora Presidente, repetente, da República Democrática de Timor-Leste continua a cultivar um estilo de quem não cura das minudências da factualidade.

Quando nos idos de 1980 José Ramos Horta (RH) era apenas o embaixador itinerante do que ele e os seus acólitos tinham batizado como causa maubere, entendeu por bem brunir os pergaminhos revolucionários inventando-se um pai anti-salazarista e anti-fascista.

Fê-lo numa obra dada à estampa pela primeira vez em 1986 sob o título Funu: The Unfinished Saga of East Timor. Reimpressa em 1996 contou, desta feita, com um prefácio de Noam Chomsky, entusiástico defensor de outra saga iniciada na mesma região escassos três meses antes da de Timor-Leste: a de Pol Pot no Cambodja.

Em 1994 as publicações Dom Quixote lançaram a versão portuguesa, já enriquecida com o referido prefácio e beneficiando  de contributos de Xanana Gusmão – Amanhã em Dili – onde, na pagª 42, se pode ler:

“O meu pai, Francisco Horta, era sargento da marinha nos anos trinta e teria ficado pela sua terra natal, Figueira da Foz, se não lhe tivesse ocorrido juntar-se à revolta dos barcos no Tejo em 1936, que deveriam seguir para Espanha para combater ao lado dos republicanos. Logo a seguir foi despachado para Timor-Leste de onde nunca mais saiu e onde morreu em 1970.”

Porém, da historiografia que, entretanto, foi surgindo resulta:

Francisco Horta (pai de RH) nasceu a 25 de agosto de 1902 na freguesia da Pena em Lisboa.
Num relatório da PIC (Polícia de Investigação Criminal) remetido ao Governador de Timor, Ferreira de Carvalho, em 1940, com informação sobre o universo de deportados existente naquela colónia, é referido como tendo sido ajudante de chauffeur,ligado à Legião Vermelha, várias vezes detido, informador da Polícia, embora pouco fiável.

É deportado para Timor, onde chega em outubro de 1931, a bordo do navio Gil Eanes, que transportava deportados políticos e sociais.

Em 1942, aquando da invasão dos Japoneses, vai para a Austrália onde fica internado num campo de refugiados, surgindo o seu nome num relatório elaborado pelo cônsul Brilhante Laborinho.
Regressa a Timor em 1945 e beneficia, tal como todos os outros deportados, quer sociais quer políticos, de uma amnistia e da possibilidade de vir para Portugal, o que faz embarcando em Dili a 8 de dezembro de 1945 no navio Angola.

Em 1947 requer o seu regresso a Timor para o que teve o aval do então Governador do Território, Óscar Ruas. Neste requerimento diz ser “marítimo” e ter nascido em 1906 (talvez para que a sua idade real – 45 anos – não fosse um óbice ao requerido).

Veio a ser funcionário público, tendo feito carreira na administração colonial onde atingiu a categoria de adjunto de chefe de posto.

Quer Madalena Salvação Barreto, no âmbito da sua Tese de Mestrado Timor do século XX : deportação, colonialismo e interações culturais , quer José António Cabrita, na preparação do seu livro Na lonjura de Timor, levaram a cabo buscas no Arquivo Histórico da Marinha e no Arquivo Histórico-Ultramarino, para tentarem localizar qualquer expediente ou documentação que respeitasse a algum Sargento Francisco Horta, mas em vão.

Também Adelino Rodrigues da Costa, autor de Os navios e os marinheiros portugueses em terra e nos mares de Timor confessa, desolado, na nota 450 do seu livro (pagª  194) “… A pedido de José Ramos Horta procurámos o processo individual de seu pai na Biblioteca Central da Marinha – Arquivo Histórico, mas sem sucesso”

Não se pode excluir que, quando escreveu Funu…, RH se tenha limitado a reproduzir, a propósito do senhor seu pai, uma lenda que corresse no seio da família.

E também será compreensível que, tendo convivido com militares portugueses que a 24 de abril de 1974 pugnavam por um Portugal uno e indivisível, defensor da civilização cristã e ocidental e, dois dias depois, deixaram de conseguir suportar os valores burgueses e se tornaram ferozes adversários do imperialismo capitalista, o jovem revolucionário RH se tenha convencido de que o passado é maleável e adaptável à evolução dos nossos interesses.

O que já se torna mais difícil de aceitar é que tenha conseguido ignorar, ao longo dos quase 40 anos que já leva a alimentar o “mito do pai marinheiro revolucionário”, que Francisco Horta não só saiu de Timor, voltando a Portugal, como, ao fim de um ano de estada, requer o regresso a Timor, onde vem a seguir uma carreira pouco consentânea com dissidências políticas. Mas, sobretudo, que a primeira chegada de Francisco Horta a Timor tenha ocorrido cinco anos antes da “revolta dos marinheiros”, que acontece no porto de Lisboa a 8 de setembro de 1936.

Talvez devido a estes antecedentes, o agora Presidente, repetente, da República Democrática de Timor-Leste continua a cultivar um estilo de quem não cura das minudências da factualidade. Tal reflete-se na entrevista a um canal de televisão, concedida aquando da recente visita oficial com que nos honrou, onde prestou os seguintes esclarecimentos:

A propósito da vaga de imigrantes timorenses (minutos 1,30 a 4).

Que conhece o problema de fundo, que é “um fenómeno muito frequente pelo mundo fora” – dado o contexto, é razoável presumir que se refere ao fenómeno das migrações clandestinas. Porém, ao descrever o “problema de fundo”, fala de candidatos à obtenção da nacionalidade portuguesa que, para acelerar o moroso processo, recorrem aos serviços de agências de viagens que: especulam no preço do bilhete de vinda, fornecem um bilhete de volta falso, cobram uma comissão para a obtenção de um emprego que não existe.

Ora, este quadro nada tem a ver com as práticas das redes de migração clandestina. Desde logo porque nada tem de clandestino; é feito às escâncaras. O que ressalta é a prática de vários crimes (especulação, burla…) cometidos no território da República Democrática de Timor-Leste, pelo que competiria às autoridades deste Estado tomar as medidas necessárias a pôr-lhes cobro.

A propósito do seu co-laureado Ximenes Belo (minutos 9 a 11).

Aqui, é forçoso reconhecer que a dimensão diplomática do cargo de supremo magistrado da nação timorense impede o seu actual titular de poder admitir: que Dili é um meio demasiado pequeno para que tais práticas, tão reiteradas e tão prolongadas no tempo não se tivessem tornado um segredo de polichinelo, “descoberto” por um tablóide holandês passados 20 anos; que, se nada se soubesse, seria de ter achado muito estranho que um Bispo, figura pública de projecção mundial, saudável, com 54 anos, que entrava em frenesim à vista de uma câmara ou de um microfone, se tenha subitamente calado e desaparecido; qualquer relação com as surdas lutas de poder que surgiram entre a Igreja, detentora de um efectivo poder fáctico, e os primeiros governos pós-independência, liderados por figuras que tinham desaparecido de Timor em 1975, com um poder meramente formal e dificilmente exercido.

Porém, ficar-se pelo muito respeito pelas vítimas e afirmar que só há três partes: estas, o Bispo e a Santa Sé, obliterando novamente o papel que deveria caber ao pilar Justiça do Estado Timorense, volta a deixar deste uma imagem muito negativa. E até a ideia, ao tanto querer driblar a realidade dos factos, de o seu país ser, porventura, um estado falhado, obra de dirigentes falhados, por muito dinheiro do petróleo que lhe despejem em cima.

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