terça-feira, 4 de outubro de 2022

Ximenes Belo, a queda (e a denegação da queda) de um herói da resistência timorense.


Público - Opinião de Ana Sá Lopes

A Igreja Católica foi um pilar da resistência em Timor-Leste e o então bispo de Díli era não só uma autoridade religiosa mas um símbolo eminentemente político.

Timor não acredita que um dos heróis da sua independência, “condecorado”, em conjunto com o actual Presidente da República Ramos-Horta, com o Nobel da Paz, tenha sido acusado de abuso de menores – e alvo de sanções por parte do Vaticano, uma delas a de ficar longe de Timor e de cidadãos menores de idade.

A saída abrupta de Ximenes Belo de Timor-Leste há 20 anos criou suspeitas. Mais tarde abundavam alegações não confirmadas de que o bispo Nobel teria praticado abusos junto dos jovens de quem era considerado o “grande protector”. Mas não havia confirmações. É certo que a demissão de Ximenes Belo de bispo de Díli surgiu com uma explicação pouco elaborada – “Estou a sofrer de fadiga mental e física, o que requer um longo período de recuperação”.

O bispo demissionário poderia ter ficado na sua terra, mas veio para Portugal, com uma passagem por Moçambique, no meio de um imenso e perturbador silêncio. Esteve calado 20 anos. Em 2020, um responsável da Igreja Católica em Díli contou à Lusa que Ximenes Belo tinha recebido “instruções” para “ter um perfil baixo, não viajar, não mostrar insígnias episcopais, ter uma atitude modesta”. A notícia desta semana do jornal holandês, com testemunhos de duas vítimas que afirmaram conhecer muitas mais, obrigou o Vaticano a assumir que Ximenes Belo já tinha sido alvo de sanções por causa das alegações sobre abuso de menores.

Um texto da Lusa é especialmente elucidativo de como a sociedade timorense – ou parte dela – se mantém ao lado do bispo associado à libertação do jugo indonésio e recusa totalmente imaginar que pode ter sido um criminoso. A Igreja Católica foi um pilar da resistência em Timor-Leste e o então bispo de Díli era não só uma autoridade religiosa mas um símbolo eminentemente político. Ximenes Belo era um herói – e Nobel da Paz. Quando os nossos heróis cometem crimes, ou são suspeitos de crimes, o mecanismo de denegação é comum. Está a acontecer em Timor-Leste neste preciso momento.

O Comité 12 de Novembro, que reúne sobreviventes do massacre de Santa Cruz, veio dar o seu apoio a Ximenes Belo: “Sentimos que temos a obrigação moral de o fazer porque, no tempo da resistência à ocupação indonésia, a Igreja Católica liderada por Ximenes Belo deu-nos protecção, coragem, solidariedade e apoio nos momentos difíceis da luta”, disse um dos responsáveis, Gregório Saldanha, que pediu aos jornalistas “cuidado” no tratamento do caso e defendeu que era mais importante que se dedicassem aos problemas do país, como a “corrupção, desenvolvimento, falta de emprego”.

Segundo conta a Lusa, os utilizadores das redes sociais de Timor-Leste estão maioritariamente ao lado de Ximenes Belo, com vários “facebookers”, incluindo jornalistas, a trocarem as respectivas fotos de perfil pelo rosto de Ximenes Belo. “O assunto tem sido praticamente ignorado pela imprensa timorense, com os jornais em papel e online e a agência oficial timorense, Tatoli, sem publicar qualquer notícia sobre o assunto”, escreve a agência de notícias portuguesa.

Um exemplo esclarecedor deste pacto de silêncio em Timor atingiu também o Presidente da República. Nenhuma das declarações de Ramos-Horta sobre o caso – relativamente anódinas – foi reproduzida pela imprensa timorense. “Para já ficamos à espera dos próximos passos, dos próximos desenvolvimentos, por parte da entidade legítima, que depois nos pode orientar sobre como gerir esta situação”, disse o Presidente, mas nenhum timorense soube.

Admitir que Ximenes Belo possa ter cometido crimes é matar um pai da pátria. Negar a questão é o processo mais fácil.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.