Expresso - Raquel Moleiro
SEF recolheu indícios de tráfico humano e auxílio à imigração ilegal em onze investigações, em vários locais do país. Santa Casa vai apoiar o regresso dos casos mais vulneráveis. Em Timor, foi feita a primeira detenção.
O esquema já era sobejamente conhecido em Portugal, só mudava a nacionalidade. O mesmo que fora noticiado em relação a nepaleses, paquistaneses, indianos ou bengalis, empilhados em habitações desumanas junto às estufas do sudoeste alentejano, começou, com o início do verão, a ocorrer com imigrantes timorenses, nos campos agrícolas de Beja e Serpa, seja na apanha da maçã ou na limpeza dos olivais. No espaço de um mês, pelo menos quatro grupos, num total de quase 200 cidadãos oriundos de Timor-Leste, foram sinalizados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) como potenciais vítimas de exploração laboral e de redes ilegais de imigração, em Beja, Serpa e Fundão, a viver em situação de carência social e laboral. Este mês, a sua presença começou a fazer-se notar também em Lisboa. Sem o trabalho prometido por quem os ajudou a viajar nem os documentos que pagaram e nunca viram, cerca de 150 jovens, maioritariamente homens, passaram a viver na rua, nos arredores do Martim Moniz ou no interior de prédios da Baixa.
O SEF participou ao Ministério Público 11 situações por indícios de auxílio à imigração ilegal e de tráfico de pessoas, em vários locais, de norte a sul. De acordo com a Procuradoria-Geral da República, a direção da investigação está agora nas mãos do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), a quem incumbe a criminalidade altamente organizada ou de especial complexidade.
Foram as condições de fragilidade habitacional e social que denunciaram a presença dos timorenses pelo país, das freguesias de Cabeça Gorda e Pias, no Alentejo, a Santa Maria Maior e Arroios, na capital, levando ao seu socorro a GNR, Segurança Social, Cáritas, Alto-Comissariado para as Migrações (ACM), Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), misericórdias, sindicatos e autarquias. Mas fez mais do que isso: pôs a descoberto uma nova rota migratória para Portugal, alimentada por falsas promessas laborais nas redes sociais, agências de auxílio à imigração (em Timor) e empresas de trabalho temporário (em Portugal), cada uma a ficar com uma parte dos até seis mil dólares pagos à cabeça - em tantos casos cedidos por agiotas - pela viagem, contrato e inscrição na Segurança Social. Na maioria dos casos, só o trajeto até Portugal, via Dubai e Madrid, é cumprido.
Desde março e até 11 de outubro, entraram em Portugal 4.721 timorenses. E apesar de a sua presença recente nas ruas de Lisboa ter levado até o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao seu encontro, a maioria das vítimas foram identificadas a sul, explicou ao Expresso o ACM: “À data de 20 de outubro, foram referenciados 825 cidadãos, sendo que o número mais significativo se concentra no distrito de Beja, mas igualmente nos concelhos de Lisboa e do Fundão. Encontram-se em diferentes fases do seu processo de integração. Muitos continuam a beneficiar do apoio prestado pelo ACM e pelas múltiplas entidades envolvidas neste processo, através do encaminhamento para respostas de acolhimento e integração já existentes”. Destes foram já realojados 474, maioritariamente em alojamentos coletivos, e 169 foram encaminhados para ofertas de emprego.
GOVERNO CRIA GRUPO TIMOR
A dimensão súbita deste movimento migratório levou o Governo a criar um grupo de trabalho interministerial unicamente dedicado ao fenómeno, para “enquadrar os cidadãos timorenses em situação de maior vulnerabilidade nas respostas nacionais já existentes em matéria de acolhimento e integração, garantindo uma resposta coordenada e integrada, tendo em vista a promoção de fluxos migratórios regulares, ordenados e seguros”, explicou o gabinete da Secretária de Estado da Igualdade e Migrações.
Para além das reuniões de plenário, foram criados subgrupos de trabalho em dimensões essenciais, como empregabilidade, social e fiscalização/investigação de crimes de auxílio à imigração ilegal, tráfico de seres humanos e angariação de mão de obra ilegal.
No terreno, é o ACM que centra a resposta, através da Rede Nacional de Apoio à Integração de Migrantes, que desde o verão se articula com várias entidades do Estado central, autarquias locais, forças de segurança, rede consular, autoridades de Saúde, entidades do terceiro setor e equipas multidisciplinares. “O ACM já participou em 76 ações coordenadas no terreno. As respostas ativadas vão desde a prestação de informação sobre direitos, acompanhamento da transferência para alojamento digno, apoio alimentar, apoio na obtenção de documentos identificativos ou encaminhamento para ofertas de trabalho”, explica o alto comissariado.
VOLTAR A CASA
E depois há também quem queira voltar a casa, e não tenha como. E aí entra a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). “Os nossos serviços sociais estiveram reunidos com a Senhora Embaixadora da República de Timor, no sentido de se proceder ao eventual apoio no regresso àquele país de cidadãos que estejam em situações humanitárias mais vulneráveis”, explicou ao Expresso, referindo o apoio já dado, fora desde movimento migratório, a uma mãe timorense e ao filho recém-nascido “em situação de especial cuidado”.
Desde o fim de julho, início de agosto, que a Santa Casa está a intervir junto dos jovens que se encontram sem-abrigo nas ruas da capital, através da sua Unidade de Emergência, coordenada com o ACM e articulada com a autarquia, segurança social e centro de emprego. “Existe um Centro de Acolhimento de Emergência, no qual a SCML fornece as refeições”, adiantam. A câmara de Lisboa já alojou uma centena de jovens.
Em Timor, a investigação sobre a existência de redes de auxílio à imigração ilegal fez a primeira detenção: o diretor de uma agência de viagens alegadamente relacionado com o caso de emigrantes abandonados em Portugal. O homem, responsável pela agência New Generation, foi detido por uma equipa conjunta policial e militar, com base num mandado de captura emitido pelo Tribunal Distrital de Díli.
Segundo a Lusa, a detenção ocorreu no âmbito de uma operação mais ampla de investigação a empresas ou indivíduos que estejam ligados a redes de tráfico humano envolvidas no envio de trabalhadores timorenses para Portugal. E para a Europa também, uma vez que o país serve também de porta de entrada para outros destinos. Desde março, regressaram a Portugal oriundos do Reino Unido 443 timorenses, considerados “inadmissíveis” por não disporem de documentos, nomeadamente visto.
"Na semana passada as autoridades policiais e de investigação timorenses prometeram reforçar o controlo de emigrantes, no intuito de reduzir potenciais casos de tráfico humano, ao mesmo tempo que continuam investigações sobre as redes envolvidas, que levaram a que “mais de cinco mil timorenses” estejam em situações “de abandono” no estrangeiros, explicou o major Francisco da Silva, chefe interino da Casa Militar, em Timor.
OS CASOS
Em Portugal, o primeiro alerta foi dado a 29 de julho, na freguesia de Cabeça Gorda, em Beja. Um grupo de 28 timorenses, que viviam numa habitação sobrelotada, foram expulsos por falta de pagamento. A casa fora arranjada por um empresário paquistanês, que não pagou a renda nem arranjou o trabalho prometido ou sequer iniciou a documentação dos trabalhadores. GNR, Junta de Freguesia, Cáritas e Segurança Social juntaram-se para lhes dar comida e teto.
Passados 20 dias, o mesmo angariador, a mesma freguesia, a mesma nacionalidade das vítimas, agora 40, uma mulher e 39 homens, também ao relento, expulsos de um antigo lar transformado em albergue para migrantes. Trabalharam sete dias, nunca viram um contrato. Os pormenores dos casos são dados ao Expresso por Francisco Franco, dirigente em Beja do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura (SINTAB), que mantém contacto com os jovens. “Só me surpreende a nacionalidade, o resto é o mesmo de sempre”, desabafa. “E há cada vez mais a chegar. Até nas minas de Aljustrel já há”, garante. Sandra Torres, da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda concorda: “90% dos trabalhadores que chegam agora são timorenses.” A maioria não fala português, só tétum, o que os torna mais suscetíveis de abuso.
Em Serpa foi detetado, a 23 de agosto, um terceiro grupo. À Lusa, o vice-presidente da autarquia, Carlos Alves, explicou que os 20 trabalhadores, que viviam em Pias em “condições habitacionais indignas” e sem contrato de trabalho, foram realojados. “Mas a situação vai continuar. Vieram-se estes embora e para a semana vão buscar mais e colocam-nos nas mesmas condições. Estão a chegar aqui diariamente entre 15 a 20 timorenses, todas as noites, em autocarros”, alerta.
O caso seguinte foi revelado a norte, nos primeiros dias de setembro. Entre 60 e 70 trabalhadores agrícolas, oriundos de Timor-Leste, foram encontrados no Fundão, a viver numa antiga discoteca “em condições muito precárias” denunciou a autarquia. A maioria foi realojada no Centro de Migrações da cidade, criado para acolher trabalhadores sazonais.
A última situação vive-se em Lisboa, no centro da capital, junto à Praça do Martim Moniz. Pelo menos 150 timorenses foram aqui referenciados pelo ACM, a viver na rua, sem trabalho ou meios de subsistência. Uma centena foi já alojada pela autarquia, principalmente no Centro de Acolhimento de Emergência, mas a grave escassez de habitações disponíveis está a dificultar o processo de ajuda. A Misericórdia fornece a alimentação.