Dra. Glória Alves. Foto de ESQUERDA.NET |
ESQUERDA.NET - Entrevista de Luís Branco e Nino Alves para o esquerda.net - 15 de novembro de 2014
Em entrevista ao esquerda.net, a magistrada Glória Alves sublinha que
foram os casos de corrupção no governo de Xanana que levaram à expulsão
dos juízes e magistrados de Timor. E antevê que o próximo passo do poder
político timorense seja tentar destruir o sistema de justiça vigente e
fomentar os tribunais tradicionais.
Escolhida pela ONU no concurso internacional para dar formação
aos magistrados timorenses e intervir em processos, Glória Alves é a
magistrada portuguesa que Xanana acusou, em entrevista televisiva
recente, de “andar aqui a desestabilizar o Governo”. Nos dois anos de
trabalho em Timor, passaram pelas suas mãos vários casos de corrupção de
ministros, altos funcionários e até do presidente do Parlamento, e
todos resultaram em acusações. Tal como outros juízes e magistrados
internacionais, foi expulsa este mês por ordem do governo de Díli, mas
acredita que os juízes e magistrados timorenses estão hoje aptos para
julgar os governantes, desde que não haja interferência do poder
político.
Tem associado a sua expulsão de Timor aos processos que
liderou, envolvendo figuras do Governo em casos de corrupção. Que
processos eram esses e o que é que lhes aconteceu?
Houve casos já julgados e com condenações, quer de membros do Governo
quer de altos funcionários. A entrar em julgamento tínhamos o caso mais
mediático da ministra das Finanças Emília Pires [com julgamento
entretanto adiado, devido à expulsão do juíz titular] e o do presidente
do Parlamento nacional [Vicente Guterres] estava a entrar em julgamento.
Havia também o caso da ex-ministra da Justiça Lúcia Lobato, que foi
indultada há pouco tempo. E vários casos envolvendo altos funcionários,
polícias, entre outros.
Acha aceitável para um país soberano ter juízes e
procuradores estrangeiros a acusarem e condenarem governantes eleitos
desse país?
Isso tem a ver com a cooperação: nós fomos todos para lá no âmbito de
um programa das Nações Unidas de apoio a Timor Leste. Esse programa
teve como objetivos formar juízes timorenses e colmatar as deficiências
de quadros que ainda existiam. Ambos os objetivos correram
paralelamente. Neste momento, o número de juízes e procuradores
timorenses é ainda limitado, são cerca de vinte juízes e outros tantos
procuradores. Isto é insuficiente para as necessidades de Timor. É por
isso que ainda se mantinham juízes e procuradores internacionais
titulares de processos.
Mas esta era uma situação que tendia a acabar com a entrada de novos
quadros timorenses: neste momento iriam entrar doze magistrados do
Ministério Público e doze juízes. Com esta entrada, os quadros
timorenses estariam completos e poderiam prescindir dos internacionais,
ficando estes apenas como assessores e a capacitar os juízes. em resumo,
esta foi uma necessidade efetiva dos quadros timorenses, devido à
insuficiência de quadros para o volume de trabalho que já tinham. E isso
estava dentro da missão do Programa das Nações Unidas.
Só há uma situação em que é impossível julgar sem juízes
internacionais: os julgamentos em processos relativos à época da crise e
das milícias. Por imposição da UNTAET, estes processos têm de ser
julgados por dois internacionais e um nacional. E ainda há processos
desses. A retirada dos juízes internacionais vai impedir que estes
processos sejam julgados.
Quando foi para Timor alguma vez pressentiu a tensão que
poderia trazer esta situação de haver juízes estrangeiros a julgar
políticos nacionais?
Isso nunca me passou pela cabeça, porque nós integrávamos os quadros
timorenses, éramos internacionais mas estávamos integrados no sistema de
justiça timorense. Havia um pedido de Timor para que estivessem lá
quadros internacionais e esse pedido foi mantido até hoje. Aliás, quando
saí de lá, o meu procurador já me tinha pedido para renovar o contrato
por mais um ano. E sucedeu o mesmo com os juízes e os meus colegas
caboverdeanos.
Um dos argumentos de Xanana Gusmão para afastar os
funcionários internacionais é a incompetência ou parcialidade nos
processos relativos ao petróleo, sempre a favor das petrolíferas
estrangeiras. Isso aconteceu mesmo?
Não. É óbvio que a razão da nossa saída, tanto na primeira resolução, que abarcou cinquenta e tal pessoas, como na última, que foi a expulsão daqueles que eles efetivamente queriam correr, não teve a nada a ver com o petróleo. Nenhum dos juízes portugueses expulsos tiveram os casos de petróleos. Eu nunca tive processos de petróleo. É evidente que não foi por essa razão que foram expulsos. A razão é clara: foi por causa dos processos crime contra governantes e altos quadros da administração pública.
Não. É óbvio que a razão da nossa saída, tanto na primeira resolução, que abarcou cinquenta e tal pessoas, como na última, que foi a expulsão daqueles que eles efetivamente queriam correr, não teve a nada a ver com o petróleo. Nenhum dos juízes portugueses expulsos tiveram os casos de petróleos. Eu nunca tive processos de petróleo. É evidente que não foi por essa razão que foram expulsos. A razão é clara: foi por causa dos processos crime contra governantes e altos quadros da administração pública.
Os juízes timorenses que vos defenderam podem vir a sofrer represálias por parte do Governo?
Parece que sim, pelo menos é isso que eles acham. É evidente que
afrontar Xanana é perigoso. Xanana tem muito poder e não permite que o
ponham em causa. Ele teve muito trabalho para executar este plano de pôr
os internacionais na rua. Os juízes opuseram-se claramente, o juíz do
Supremo Tribunal timorense continua a dizer que não vai cumprir a
resolução, pôs-se numa posição delicada. Se correm mesmo perigo de vida,
eu não sei. Agora sei que o sistema judicial corre perigo de vida.
Penso que vai haver uma grande azáfama em destruir o sistema e em
demitir o dr. Guilhermino da Silva [o presidente do Supremo Tribunal]
que deu a cara. O Governo vai fazer tudo para o demitir e para destruir o
sistema judicial implantado, o chamado sistema continental, em que a
legislação é muito parecida com a nossa. E também vai haver uma
tendência - que já foi aflorada na primeira resolução - para fomentar
novamente o poder dos tribunais tradicionais. São tribunais onde um
abuso sexual de menores é resolvido com um porco ou com um galo, onde as
violações são resolvidas entre as famílias, e as vítimas não têm
qualquer importância.
Com a partida dos funcionários internacionais, continua a confiar na justiça timorense?
Eu tenho imensa confiança nos meus colegas do Ministério Público e
nos juízes. Creio que a instituição tribunal está consolidada e que a
Procuradoria também, e a prova disso foi a resposta que tiveram. Se não
houver uma interferência do poder político nos tribunais e na
Procuradoria, eles estão aptos a levar por diante os processos, a julgar
a Emília Pires ou o presidente do Parlamento. Se o poder político
intervir, isso será outra questão. Mas eles enquanto instituição estão
aptos para os julgar, mesmo com os internacionais fora de Timor.
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