Editorial - Público - 4 de novembro de 2014
Em 1999, as milícias pró-indonésias destruíram
Timor Leste à frente dos nossos olhos. Não foram só as casas e os
edifícios públicos que ficaram em pó. De um dia para o outro,
desapareceram do país praticamente todos os quadros porque os quadros
eram sobretudo ocupados por indonésios, não por timorenses.
Raras vezes na história a ideia do “nascimento” de uma nação foi tão literal. Os timorenses não começaram do zero absoluto. Tinham a sua cultura, língua e costumes. Mas se pensarmos em democracia falar em zero não é exagero.
Raras vezes na história a ideia do “nascimento” de uma nação foi tão literal. Os timorenses não começaram do zero absoluto. Tinham a sua cultura, língua e costumes. Mas se pensarmos em democracia falar em zero não é exagero.
Nada
disto pode ser ignorado quando pensamos na incrível decisão do governo
timorense de expulsar os magistrados estrangeiros, entre os quais alguns
portugueses. O sistema de justiça timorense tem 12 anos. Começou a ser
construído do zero, quando não havia um tribunal em pé e, mais
importante, nenhum magistrado.
Quando em 2000, com o país em cinzas, as
Nações Unidas começaram a reconstruir o país, distribuíram panfletos de
helicóptero a pedir em tetum e bahasa indonésio algo do tipo: “Se
estudou Direito ou trabalhou num tribunal, fale connosco”. Apareceram 17
timorenses. Este foi o ponto de partida. Pouco depois, foram nomeados
25 juízes, 13 procuradores e nove defensores oficiosos. Todos tinham
estudado em universidades indonésias e quase todos tinham sido
confinados a tarefas laterais na justiça. Quando começaram, tiveram de
mergulhar num corpo legal novo (e desconhecido), com leis em português
(uma língua desconhecida) e tradutores fracos.
Dez anos depois, um
relatório independente escrevia isto: “Treze juízes, independentemente
do seu mérito e dedicação, simplesmente não conseguem dar resposta às
necessidades de justiça de mais de um milhão de pessoas espalhadas pelo
país, muitas delas em áreas remotas.” Segundo a ONU, há hoje 17 juízes,
15 procuradores e 11 defensores oficiosos timorenses. A estes,
juntavam-se cerca de 50 profissionais de justiça estrangeiros, 10 dos
quais juízes. Numa frase, a justiça timorense é isto. A que se somam os
problemas descritos em pormenor em inúmeras avaliações, como a da ONG
local Judicial System Monitoring Programme, que há uns meses fez
inspecções e encontrou tribunais sem um único computador a funcionar,
sem livros de Direito, sem email e mesmo sem electricidade.
Numa
década não se constrói um sistema judicial. Sobretudo num país onde 50%
dos adultos são analfabetos e 50% da população vive abaixo do limiar da
pobreza. O primeiro-ministro Xanana Gusmão fala em “interesse nacional”
para justificar as expulsões. Fala dos magistrados portugueses como se
tivessem cometido um crime de enorme gravidade. Nada nem nenhuma
insatisfação em relação ao seu trabalho justifica um tratamento tão
humilhante. A arrogância demonstrada pelo poder timorense poderá ter
explicações várias.
Os timorenses querem ter o controlo sobre os
destinos do seu país. Imaginaram que o processo de “capacitação” dos
seus quadros seria mais rápido. Que os estrangeiros deveriam ser apenas
assessores e mentores e não decisores. Poderão ter desejado não perder
nenhum caso em tribunal. É legítimo. Mas é no mínimo injusto transformar
os estrangeiros em bodes expiatórios para a sua frustração.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.